domingo, 14 de fevereiro de 2010

Carnaval da Bahia


O Trio Elétrico

Carnal, lúdico, dilacerador, espiritualizado, físico, o Carnaval da Bahia é a maior festa urbana do Brasil, criada e mantida pelo povo. Uma manifestação espontânea, criadora, livre, pura, onde todos são—com maior ou menor competência—sambistas, frevistas, loucos dançarinos, na emoção suada atrás do som estridente, eletrizante, do trio. Ou no ritmo calmo, forte, tranqüilizante, orientalizado, do afoxé, incorporado num só movimento. Um ato de entrega, de transe e êxtase, de liberação de todas as tensões reprimidas e da envolvência absoluta entre o real e o fantástico, capaz de, num único e frenético impulso, balançar o chão da praça.

Na Bahia, são cinco dias de folia, que começa na sexta-feira, quando o Rei Momo recebe, em praça pública, as chaves simbólicas da cidade, depois de desfilar, em carro aberto, com a rainha e princesas, pelas ruas centrais da cidade. A ordem de "alegria geral" do Rei é cumprida literalmente e o delírio começa quando aparece ao longe, descendo a ladeira no sentido da praça Castro Alves, o primeiro trio elétrico. A impressão que se tem é que todas as cabeças do mundo avançam em volta do objeto luminoso e o povo se deixa possuir pelo som eletrico do dono da rua, o maior símbolo desse_Carnaval.

O trio e a praça Castro Alves são o Carnaval. A praça é o maior momento do trio, o território livre, o clímax. Se o trio pode tudo, na praça tudo é possível. A história do trio é bem anterior, apesar da praça já existir. Mas não se transavam. Foi o poeta Caetano Veloso que redimensionou o som do trio, e do próprio Carnaval, a invenção do diabo que Deus abençoou, e determinou: "A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião." Caetano queria "um frevo novo" e teve mais que isso: uma praçadepúblicoheterogêneo,do gay power, artistas, intelectuais e do povo, os reais tietes do som do trio elétrico.

SENTIMENTO DA BAHIA

Mas o trio não pertence à praça, nem é exclusivo do seu público. A concretude do seu som faz o Carnaval que envolve toda a cidade: a Barra—início da orla marítima—até a Praça da Sé—no Centro Histórico de Salvador—além dos bairros que mantêm com peculiaridade própria a sua festa. Tecnicamente, o trio elétrico é somente som e luz sobre uma base física que o viabiliza (e que inclui algo tão prosaico como um caminhão). Tem quem afirme que a multidão que ele arrasta é apenas uma turba enlouquecida que se envolve de corpo e alma na dança frenética, no agitar de braços e pernas, em pulos que respondem o ritmo do trio. Mas quem já foi atrás do trio elétrico sabe que não é nada disso e entende porque ele é a síntese do Carnaval da Bahia, ou, mais ainda, porque ele diz de um sentimento da Bahia.

Foi em 1938 que surgiu a idéia do trio elétrico, quando Dodô (Adolfo Nascimento), radiotécnico e músico, e Osmar (Osmar Macedo), inventor e músico, se conheceram tocando em programada rádio, ao lado de Dorival Caymmi, entre outros nomes já famosos da época. Dodô, estudioso de eletrônica, pesquisava uma forma de amplificar o som dos instrumentos de corda, o que só conseguiu em 1948, com o aperfeiçoamento do violão maciço, que eliminava a dissonância e a distorção, principais problemas dos violões elétricos conhecidos. Em 1950, pela primeira vez, a eletricidade incorporou-se ao Carnaval baiano.

Inspirados pelo Vassourinhas—Academia de Frevo do Recife—que, de passagem para o Rio de Janeiro, se apresentou em Salvador, Dodô e Osmar resolveram sair durante o Carnaval, tocando aqueles frevos pernambucanos, com seus instrumentos e amplificadores. Assim, em cima de um fubica—um Ford 1949—equipado com dois alto-falantes, eles se apresentaram nas ruas da cidade, como a dupla elétrica. Foi um sucesso, mas havia resistências, principalmente da classe média que não gostava da "molecada" que ia atras da dupla.

Mas Dodô e Osmar não desistiram. No ano seguinte 1951, melhoraram sensivelmente a qualidade do som e, com o surgimento de um terceiro músico, Temistocles Aragão,formava-se o trio elétrico. Em 1952, um fato novo: a empresa Fratelli Vita (fabricante de refrigerantes e cristais), percebendo o sucesso e a popularidade do conjunto, resolveu patrocinar o trio, colocando-o num caminhão festivamente decorado. O êxito foi estrondoso e o trio acabaria tempos mais tarde sendo definitivamente glorificado pelo então tropicalista Caetano Veloso: "Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu."

LÁ VEM O TRIO

O trio elétrico de Dodô e Osmar fez escola. Dodô morreu e está ausente do Carnaval desde 1979, sendo substituído por Armandinho, filho de Osmar, que sempre afirma que quando morrer quer ser levado por todos os trios no "cortejo fúnebre mais alegre que já se viu". A mesma busca de perfeição acompanha o trio elétrico Tapajós, há mais de 20 anos animando o Carnaval baiano, sendo que, ao longo desse tempo, já conquistou dois tricampeonatos. O trio Tapajós surgiu em 1959, no subúrbio de Periperi,ele surgiu em 62 quando, pela primeira vez, foi ao centro da cidade. Hoje, ele é uma empresa. Mantém cinco carros sendo que apenas um permanece em Salvador e os outros vão para o sul do País.

Durante esse período surgiram outros trios: Marajós, Tupinambás, Saborosa, Ypiranga, 5 Irmãos e, já há alguns anos, vem merecendo destaque o trio elétrico do ex-conjunto musical Novos Baianos que todo Carnaval reúne os seus antigos integrantes, Pepeu Gomes, Baby, Paulinho Bocade Cantor, e sai no maior auê agitando esse Carnaval, sem tempo nem hora, com todo o espaço e muita pauleira. Todos esses trios fazem o Carnaval da cidade, circulando e puxando a multidão, que quer pular independente de qualquer integração a blocos ou outras entidades carnavalescas.

Foram criados, também, os trios détricos (e mini-trios) que saem ligados a blocos e cordões. $ão verdadeiros palcos instalados sobre grandes caminhões, com excelente capacidade de sonorização, luz, cor e efeitos especiais. Destacam-se os dos blocos Eva, Trás os Montes, Cheiro de Amor Camaleão, Pinel, com suas bandas possantes, que enlouquecem não apenas os integrantes do bloco mas os foliões de uma maneira geral, que são obrigados a se contentar em pular fora do espaço fisico ocupado pelo bloco, geralmente garantido através de uma corda de isolamento mantida por seguranças especiais.

MANDA DESCER...

"Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré, Todo o pessoal, Manda descerpra ver, "filhos de Ghandi". (Gilberto Gil). Nada é comparável a quem vem de um trio elétrico, suor escorrendo pelo corpo, a carne exposta, o corpo aberto e bate de frente com um afoxé, naquela atitude pastoral, fechada, enchendo a rua com a sua força. "Dá vontade de chorar, você sente aquela calma, aquele arrepio percorrendo o corpo, aquela força tomando conta de você. Esse é o lado espiritual, orientalizado do Carnaval, o equilíbrio", como afirma o cantor e compositor Gilberto, o mais célebre integrante do afoxé Filhos de Ghandi.

O afoxé, explica o professor e historiador Cid Teixeira, é um bloco carnavalesco, uma brincadeira de forma, conteúdo e comportamento específico tendo em vista que os seus membros foliões estão vinculados a um terreiro de candomblé, unidos por uma religião, pelo uso de uma língua, dança, ritmos e códigos de origem nagô. Além disso, tem, fundamentalmente, consciência de grupo, comunidade de valores e hábitos que o distingue de qualquer outro tipo de bloco ou cordão. Os laços lúdicos religiosos que congregam as pessoas no afoxé importam, antes de mais nada, pela manutenção de valores culturais ligados ao afoxé e suas tradições africanas, transportadas para a Bahia, adaptadas e assimiladas dentro de uma nova realidade.

Atualmente, entre todos, Filhos de Gandhi é o mais famoso. Com sua roupa branca, seu turbante felpudo, na sua maioria é composto por negros, homens de origem humilde, operários, ligados aos inúmeros terreiros de candomblé da Bahia. Mas o primeiro grupo de afoxé saiu às ruas em 1895 e mostrava aos foliões de Salvador as pectos dos ritos do candomblé. A partir dessa época surgiram muitos outros vindos dos bairros de Brot,as, Engenho Velho, Soledade, Santana e Aguade Meninos, destacando-sea Chegada Africana e os Filhos da Africa como os mais representativos. O Clube de Pândegos da África, surgido em 1897, fez também muito sucesso.

FORÇA E NEGRITUDE

Mas o Carnaval da Bahia é ainda rico pela força de outras manifestações culturais, como são os blocos afro, cadaano em quantidade maior e alguns, já conhecidos nacionalmente, como é o caso do llê Aiyê. Outros estão crescendo e criando fama, a exemplo do Malê Debalê, do Araketu, ObáLaiyê e Puxada Carnavalesca Axé. A força desses blocos está na cultura negra, na beleza e plasticidade de suas sambistas, na própria fantasia e na alegria dos se,us temas, sempre homenageando a "mãe Africa", e na harmonia de suas baterias, puxadas, geralmente, por ágeis mãos negras, no som sincopado dos atabaques. Culturalmente, eles representam a força viva da negritude na Bahia e o Carnaval é a forma mais pungente de fazer ecoar o seu grito de liberdade.

Outros blocos e cordões fazem do Carnaval uma festa que Ihes permite mostrar a sua força e união. Nesse caso, destaca-se o Apaches do Tororó, com mais de mil homens empunhando machados e cânticos de amor contra a guerra, na categoria de blocos índios. Existem outros: Cacique do Garcia, Comanches, Guaranys e Tupys. Todos representam segmentos de uma camada mais baixa da população e, por isso mesmo, são de uma alegria contagiante, de um samba forte, autêntico, com suas negras e mulatas sambando no pé, de tangas, missangas e colares.

Esfuziantes e descompromissados—a não ser com o direito de brincar—estão os outros cordões e blocos formados por jovens da classe média. Existem os que sempre se apresentam com fantasias sofisticadas (Os Internacionais, Corujas, Lord's) e os que preferem a simplicidade e o comodismo de mortalhas ou macacões (Trás os Montes, Cheiro de Amor, Eva, Camaleão, Jacu, Filhos do Barão). Há ainda os que, ferindo os padrões normais, desfilam tra vestidos de mulheres, homenageando algumas minorias, as prostitutas e os travestis e dando ao Carnaval a irreverência e humor indispensáveis.

CONQUISTA DO POVO

Importado através do Entrudo, uma festa portuguesa de uma violência inconseqüente, acapadoçada, sem ritmo e sem riso, diz a história, o Carnaval da Bahia criou a sua própria maneira de ser, bem diferente das origens herdadas. Verdade que nas últimas décadas do século passado não era assim. Era um Carnaval elitista, feito para a classe média, com desfile das Sociedades Carnavalescas Fantoches da Euterpe e Cruz Vermelha (Cruzeiro da Vitória), as principais, seguidas do Inocentes em Progresso e Democrata. Copiando o que acontecia na Europa, essas entidades saíam pelas ruas centrais de Salvador, com carros alegóricos, rainhas e princesas, além das alas dos cavaleiros, uniformizados como soldados e oficiais romanos, destacando-se o arauto.

Na década de 40, o povo não participava desse tipo de Carnaval-espetáculo. No máximo, surgiam de vez em quando em áreas da avenida Sete de Setembro, São Pedro, Piedade e Mercês, jamais chegando ao Campo Grande locais nobres da cidade) as batucadas, os bandos de índios, os tímidos afoxés (grupos de homens com seu ritmo lento, com suas máscaras de traços africanos, alguns recobertos de palhas de coqueiros, usando apenas instrumentos de percussão, os pés calosos, agora no asfalto). O povo se divertia em áreas delimitadas: Baixa dos Sapateiros (onde se concentra o Comércio mais popular de Salvador) e Terreiro de Jesus (que integra o Centro Histórico da cidade). Aos poucos, porém, as camadas populares foram ocupando espaços na Sé, Praça Municipal, rua Chile, alcançando a praça Castro Alves, locais onde a festa acontece com toda a força por ser o Centro de Salvador, fazendo o verdadeiro Carnaval da Bahia que acontece hoje.

A pagã Carnen Lévare (abstinência da came, data que designava a véspera de Quarta-feira de Cinzas), herança dos bacanais, lupercais e saturnais romanos, aqui se realiza através da espontaneidade popular, orientada pelos organismos governamentais que atuam respeitando a vontade do povo. O Carnaval da Bahia, na verdade, começa quando o sol de amarelo Oxum brilha no céu, anunciando a festa do verão baiano, com muito samba, festa de largo, a partir do dia maior, Santa Bárbara, Iansã, no sincretismo religioso, senhora das nuvens de chumbo, deusa dos relâmpagos, rainha dos raios e das tempestades, que segura o tempo até o Carnaval chegar.

Fonte: Bahiatursa

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